A quem interessar possa, uma newsletter sobre zines, processos, andanças, rabiscos e uns escritos.
Oizinho, oi zine
Aconteceu, virei newsletter. Senti a necessidade de ter uma comunicação melhor dos meus lançamentos e processos e também compartilhar meus textos que volta e meia postava trechos no instagram e alguns pediam pra ler inteiro. Então tá aí. A quem interessar possa, newsletter que vou tentar produzir semanal quinzenalmente e vai contar um pouco de alguma publicação e trazer um texto meu de ficção/poesia inventado em fatos reais (ou não).
UMA PUBLICAÇÃO
Zines infinitos
Eu sempre gostei de pesquisar jeitos de usar o papel como coadjuvante pra construir narrativas. Uma vez eu vi um cartão de dobra infinita nesses livros de scrapbook e queria usar pra alguma coisa que fizesse sentido. Eis que em 2014, na Copa do Brasil, rolou o fatídico 7x1 e na hora eu lembrei do tal cartão.
Aí surgiu o zine 7x1 - Gol - Pesadelo infinito. Os primeiros que eu fiz eram todos manuais e os letterings desenhados nos cartões um por um. Fazia tiragens pequenas de dez exemplares por feira que participava. Em 2018 eu finalmente consegui fazer uma faca e tiragem no offset. É uma colchinha de retalhos pra fazer encaixar o texto. Mas dá certo.
Tem gente que ainda fica chateada com o ocorrido e olha meio triste pra publicação. A ideia é exorcizar o trauma. O zine é infinito mas você pode parar a goleada na hora que quiser, coisa que naquele dia não deu muito pra fazer. Corta pra 2022, vivendo no Brasil, todo dia um 7x1 diferente. O zine ficou mais atual do que nunca.
E agora também eu fiz a continuação da coleção. F*ck me forever materializa o insaciável desejo dos bons amantes.
O Gol e o FuckMe estão disponíveis pra venda no alekalko.com e também dá pra levar o combo com um descontinho delícia. Corre lá.
UM ESCRITO
Desfibrilador de libido
4
Existe um garoto. Ele tem quatro anos como eu. Quando ele olha pra mim é uma montanha-russa e tudo o que me resta a fazer é sorrir. O primeiro amor à primeira vista é esse lugar onde a sobremesa se come no lugar do almoço.
16
Existe um homem. Ele é dez anos mais velho do que eu e já leu, viu e ouviu dez anos a mais de coisas do que eu. Eu me apaixono por ele e pelas coisas todas. Por ele eu começo a escrever querendo que ele se apaixone por mim. Vai levar dez anos pra gente dar o primeiro beijo. Vai ser ruim. Mas vou gostar dele pra sempre.
24
Existe um homem. Ele é a pessoa mais interessante da festa e toda atenção dele está em mim. Ele me ensina umas coisas que nem eu sabia que podia gostar. Um dia ele me chama pra mostrar que tatuou um desenho meu no braço. Agora vou ter você pra sempre aqui. Eu não acreditei. Também não acreditei quando ele morreu. De algum jeito eu tatuei ele também em mim.
25
Existe um garoto. Era pra ser uma noite só mas foram uns cinco anos e depois mais uns três. A gente não tinha nenhum assunto em comum, mas trepávamos que era uma coisa de louco. Ele me levava pra um lugar dentro de mim que eu não gostava e não me reconhecia e não sabia onde ficava a saída. Esse lugar tinha uma porta bem trancada e a chave era só com ele. Eu não gosto de quem eu era nesse lugar.
30
Existe um homem e a gente tem medo de ficar sozinho junto. Ele é casado e eu tenho um namorado. Já é tarde, não dá mais pra desapaixonar. Eu moro em São Paulo, ele em Nova York. Nos conhecemos na Espanha, nos beijamos no México e rompemos na Argentina. Bebemos tequila do gargalo, nossas pernas trançadas, mergulhados na banheira do hotel e ele confessa: Até ontem eu estava só vivendo, mas depois que eu te conheci eu tive vontade de viver. Foi a coisa mais bonita que alguém me disse e eu morei nela por anos.
36
Existe esse ator anônimo em Nova York. Um amigo puxa conversa. Ele se demora no banheiro do bar e volta um pouco consternado. Meu pau envelheceu tanto. Tá muito mais velho do que eu. Eu rio. Tinha graça no contexto. Acho que por ele ser mais velho, é a pessoa mais responsável aqui e você deveria deixar ele tomar todas as decisões. Mas quem toma sou eu. Ele me liga no dia seguinte passando um review a meu respeito. Me sinto um uber, um entregador de ifood. Minha pontuação bate o 5.0. Acho uma das coisas mais gentis pós-coito casual que um homem já fez por mim depois de passar café. Preciso rever uma série de coisas na minha vida.
37
Existe um homem e eu gosto das coisas que ele fala sobre mim. Me faz parecer ser mais interessante do que eu sou e eu também quero acreditar nessa versão dele. Nossa cama sempre acaba com mais gente. Uma vez contei mais de 5.
38
Existe um homem. Nos reencontramos com a alegria de dois alienígenas que se reconhecem longe do planeta de origem. Nossos corpos não se encaixam direito mas as palavras e as risadas sim. Posso ver a janela dele da janela do meu quarto. Você ainda tá acordado? Ele pisca a luz duas vezes. Pisco a minha três e vou dormir.
39
Existem algumas mulheres, uma delas não me responde mais.
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Existe um homem. Ele divide as contas comigo e a caneca onde guardamos as escovas de dente. Nós gostamos do mesmo tipo de homem. A gente ri o dia todo. Conversa sobre as coisas mais difíceis, jamais ditas. Nossos silêncios são confortáveis. Ele preenche um lugar de afeto meu que eu nunca acessei. Agora sei como é se sentir em casa em outra pessoa.
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Existe um homem. O português da padaria. Eu vou comprar pão depois do trabalho e ele me oferece uma taça de vinho. É fevereiro, ele deve ter uma ou duas namoradas, ex-mulher e talvez um par de crianças e eu tenho um carnaval chegando depois de dois anos de luto e uma total ausência de vontade de viver. O primeiro beijo acontece no último dia do ano e desfibrila uma libido que eu desconhecia. Sinto ela saindo pelas ruas do meu corpo, se manifestando, tacando fogo nos ônibus, gritando, quebrando as vidraças. O gigante acordou. Mas é pandemia e ele vai pra Europa dali a duas semanas. Não nos falamos mais. Mas meu colorido voltou. Desde então tenho gozado alto praticamente todos os dias. Desse jeito vão te ouvir na França!, grita o vizinho. Pode gritar! Quero que ouçam mesmo!
Quenhé
Ale Kalko é designer, ilustradora, letrista e escritora. Também é uma microeditora de uma pessoa só com a proposta de explorar e pesquisar o suporte físico para construir narrativas. Através de dobras, transparências e facas cria livros e zines interativos. Seu trabalho também inclui cartazes, bottons, placas e outras mídias. Poesia, rabisco, lettering lúdico, questões existenciais e humor agridoce. Autopublica-se desde 1997.